Pensar nem sempre é estar doente dos olhos

O maravilhoso heterônimo de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, diz em um dos poemas que amamos que " pensar é estar doente dos olhos", porque ele quer que seus leitores se ponham a sentir o mundo. Mas, como hoje poucas pessoas fazem qualquer uma das duas coisas ( pensar e sentir), permitimo-nos dizer que sentir é fundamental, mas pensar também. Exercite essas duas capacidades: leia mais, viaje mais, converse mais com gente interessante, gaste seu tempo discutindo ideias e não pessoas.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Um conto novo

 O texto a seguir foi terminado hoje, após alguns dias de trabalho. É um pouco longo, espero que tenham paciência para ele.
AT LAST – GIOVANA MARQUES FONTES
Já passava das seis da tarde quando ela entrou no taxi. Nova Iorque naquela época do ano costumava ser um pouco abafada ou talvez, nem isso, sufocante mesmo. Exageros de turistas deslumbrados transitando na quinta avenida, loucos por fotos do Rockefeller Center, da Catedral St. Patrick. Gente barulhenta! Nova Iorque definitivamente não era mais a mesma. Quando Beatriz chegara ali, no início dos anos 90, a cidade tinha mais glamour, embora fosse também menos segura. Não que a Big Aplle perdera todo o seu charme, mas aquela avalanche de novos ricos a incomodava. Uma gente sem modos, que gargalhava alto, chamando a atenção das pessoas. Umas mulherzinhas magras, de voz estridente, desfilando suas recém aquisições de Louis Vuitton e Prada, alardeando sua riqueza insignificante ( sim, porque perto dos verdadeiros ricos de Manhattan, não passavam de pobres metidinhas a besta, as quais mal falavam português, que dirá inglês), tendo espasmos em frente à vitrine da Tiffanny & CO, sonhando com “diamond rings”, crendo que Marilyn Monroe tinha razão: “ Diamonds are a girl’s best friend”. Gente tonta!
Quando o taxi dirigido pelo mesmo homem indiano habitual, muito atencioso, a deixou na esquina da quinta com a 42 ela se sentiu aliviada. Já via a Grand Central Station, certamente um metrô bem menos barulhento e cheio de turistas a levaria para casa. Mas onde afinal estava o aviso da linha que ela queria pegar? Estranho não haver informação sobre ele, fazia dias que ela não encontrava o Metrô e acabava rumando a pé para Lower Manhattan, a caminho da Liberty St com a Church St. Quando deixou o Brasil para estudar música na Julliard School, Beatriz pensava em voltar, ela gosta de ser brasileira, tem orgulho do seu país, com todos os defeitos que ele possui, mas com o tempo ela foi se sentindo tão local que já não tinha mais como retroceder. De mais a mais a família dela vivia no interior de São Paulo, num local onde não poderia viver de sua arte – violoncelista em Pirapozinho? Nem como piada tinha graça. Bem, isso a obrigaria a mudar para a capital do estado ou pro Rio. O que ocorre é que do Rio, como toda boa paulista, ela não gostava, não iria para lá nem morta! E Sampa, o que dizer de Sampa, é um superlugar, porém NY também era e ela já estava estabelecida lá, tocava com grandes músicos, enfim... o sacrifício não valeria a pena, por isso foi ficando.
Agora, 11 anos depois, certamente não haveria retrocesso, ela conseguira o Green Card e já aprendera a amar Manhattan, sentia-se quase uma personagem do Sex and the City, não fosse pela ausência do sex, afinal namorados e afins tinham passado longe dela pelo menos nos últimos seis meses ou mais, já perdera a conta. Ou talvez, ela até fosse mesmo como a Charlotte, a mais romântica das quatro amigas. Acho que precisava de um pouco de Samantha, às vezes, mas suas incucações com o próprio corpo a impediam de ser tão impetuosa e segura de si como a personagem ninfomaníaca.
Tudo naquele dia corria como de costume: o mesmo taxista, o mesmo trem que não vinha, porém algo a incomodava sobremaneira, embora Bia não tivesse percebido que o taxista indiano observava de longe, há dias, o ritual cumprido por ela. Ela que sempre fora tão solícita, que sempre se interessara pelas pessoas e seus costumes, ela percebeu, pela primeira vez, que havia meses era levada à estação pelo mesmo taxista, só que nada sabia dele, a não ser que era indiano. Por que estaria ele em NYC? Pobreza em sua terra natal? Desilusão amorosa, seria ele um assassino procurado? Às vezes a cabeça de Bia pensava como os seriados de policiais que ela adorava: CSI, Criminal Minds, Law and Order... quando criança ela era aficcionada pelos livros de mistério da série vaga-lume, deliciou-se várias vezes com a releitura de O mistério do Cinco Estrelas, O rapto do garoto de ouro e Spharion, dentre outros. Já adolescente, devorou os livros de Agatha Christie, os romances e contos de Rubem Fonseca, também gostava de Maupassant, Conan Doyle e até Stephen King, lido no original nos tempos de curso de inglês. Claro que suas leituras iam muito além disso, Beatriz era uma mulher notável, com uma vasta cultura geral e um especial interesse pela música e as demais artes. É que esse passado todo ligado aos livros de mistério, somado aos seriados atuais, a tornavam investigativa e, por vezes, meio paranóica (teria ficado ainda mais se percebesse que o homem a observa constantemente). Fora isso precisamente que a fizera pensar no taxista: ele sabia todos os seus hábitos, ouvira diversas vezes suas conversas ao celular com os amigos, horários de encontros marcados. Pela primeira vez ela pensara que poderia ser ele o homem que vinha insistentemente tentando abordá-la sem se mostrar.
No primeiro dia em que recebeu as tulipas brancas ficou feliz, pensou que podiam ser de Jurgen, um alemão belíssimo, muito discreto, que dividira o palco com ela em diversas ocasiões. Havia tempo que ela o paquerava, mas não sabia como marcar um encontro, ele era tão reservado... só quando aquelas flores vieram seu lado adolescente sonhou que o príncipe a percebera, porém não havia cartão. Ela então esperou um sinal, mas nada. Eis que três dias depois, no mesmo horário, mais um buquê de tulipas brancas chegava, desta vez acompanhado por uma caixa. Bia teve medo abri-la. Depois do 11 de setembro todos ficaram um pouco paranóicos. E se fosse uma bomba? Sabe-se lá que tipo de malucos estão por aí. A curiosidade feminina, contudo, a consumia e ela arriscou: bem, dentro da caixa havia apenas um cd de Etta James, cujo encarte trazia grifada a música At Last. É claro que ela gostava tanto de Etta quando da canção e por isso a conhecia bem, mesmo assim resolveu ouvi-la novamente, atentando com cuidado para a letra: “ Enfim meu amor apareceu/ meus dias de solidão acabaram/e a vida é como uma canção/ enfim o céu acima está azul...” Era óbvio que o remetente das flores a amava, mas o que queria ele com tanto mistério? Por que não se apresentava ( ou se revelava)?
Como adorava simbologia, resolveu ver se encontrava um significado para as tulipas brancas. Encontrou um site que afirmava serem estas flores símbolo da declaração de amor e, como o branco é símbolo de pureza e paz, ela pressupôs estar diante de um admirador recatado e um pouco estranho, entretanto inofensivo. Contudo, ao fim de um mês de ritual, ela começou a se preocupar. Falou sobre isso com as amigas, que a aconselharam a ir à polícia. Para dizer o quê? O que eles poderiam fazer? Estariam interessados em um caso como esse tendo tantos crimes graves para resolver? Decidiu bancar Sherlock e descobrir por si mesma. Mas, até aquele fatídico dia, não havia suspeitado do taxista indiano. No dia seguinte, levou ao ensaio uma das tulipas e resolveu exibi-la consigo ao pegar o táxi: queria investigar a reação do homem ao ver a flor. Na verdade, como o trabalho acabara mais cedo, Bia ficou 25 minutos esperando até que aquele taxista passasse pela quinta avenida. Ninguém espera tanto por um veículo em NY, a menos que tenha um motivo: a cidade tem uma frota imensa de táxis. Mas eis que quando passavam cinco minutos das seis da tarde ele apareceu. “Good afterrrrnoon”, disse ele com seu sotaque inconfundível. Só que dessa vez ela perguntara algo a ele, em vez de simplesmente responder. Num misto de felicidade e pasmo ele respondeu: “vim para cá porque perdi minha família num acidente de avião. O choque me fez querer mudar de vida, abandonei minhas empresas em Kalyan, região metropolitana de Mumbai, e sai sem rumo pelo mundo. Após dois anos viajando cheguei a NYC: esse era o sonho de Shobba, porém eu não tinha coragem de concretizá-lo sozinho, por fim entendi que devia isso a ela.” “Ah, sim, ainda recebo dinheiro todos os meses e dividendos no final do ano, o taxi é apenas uma distração, achei que seria uma forma de conhecer pessoas longe das convenções sociais com que fui criado. Trabalho poucas horas por dia, só que gosto de estar aqui quando a senhorita passa”. Ao ouvir isso Bia estremeceu, seu sexto sentido a fez pensar que não sairia viva do táxi, contudo sua razão lhe disse que ela era tola e raciocinava como personagem de filme B .
Quando chegaram à rua 42, a pergunta de Anando ( esse era o nome dele) surpreendeu Beatriz: por que a senhorita nunca me pede que a deixe em seu destino final? Levaríamos menos tempo daqui até a Liberty com a Church St de táxi do que a senhorita leva a pé. Se sua preocupação é o preço eu cobro o mesmo, assim a senhorita não tem desgastes nem custos adicionais. Desculpe-me se a assustei, mas é que ouço tantas ligações suas que já intui para qual direção vai, porém não quis ser invasivo, só que tenho pena de vê-la caminhar tanto. Beatriz pagou a tarifa usual e desceu do taxi muda, atônita. Ao sair da Grand Central a pé, em direção ao 10006 Lower Manhattan, cuidou para ver se não era seguida. E era, mas o indiano se disfarçava bem na multidão, ela não pode percebê-lo. Naquela noite, sonhou que era seqüestrada e que sofria muito nas mãos de Anando antes que ele a matasse. Na manhã seguinte, ela foi diretamente à delegacia e reportou à autoridade de plantão tudo o que sucedera no último mês. O delegado ficou muito bravo com Bia, disse que ela deveria tê-los procurado antes, porque o perfil descrito por ela combinava com o de serial killers. Decidiu, então, sair da cidade sem deixar muitos vestígios. Bia ligou para o maestro com quem ensaiava para um novo concerto e disse que estava doente e se ausentaria por uns dias. Pegou apenas uma mala pequena, sua imensa nécessaire, o violoncelo e foi para o aeroporto. Já que teria de “fugir” iria para a praia, não havia nada de que ela gostasse mais do que o mar.
Chegando ao Maine, ligou para o Agente Hills, encarregado do caso dela. Ele disse que localizara Anando e que o estava seguindo, porém era impossível prendê-lo apenas por suspeita, a história dele sobre a família e as empresas era real. Além disso, Anando jamais tivera passagem pela polícia: que ela ficasse calma ─ lhe pediu Hills ─ longe de NYC Bia estaria a salvo. Ela então vagou despreocupadamente pela orla, tomou um pouco de sol, coisa que não fazia há mais de um ano e, finalmente, sorveu vagarosamente uma Heineken, gostava de cerveja, porém só no Brasil se costumava conseguir uma realmente gelada. Aquela estava como de costume, fresca, da maneira como preferem os americanos. Cansada, voltou ao hotel para um descanso, mas sequer teve coragem de entrar no quarto: a visão das tulipas na porta do 288, seu aposento, lhe provocou arrepios e uma crise de choro. Sem saber a quem recorrer, saiu desorientada: os faróis dos carros naquele lusco-fusco a entorpeciam ainda mais, sua cabeça pesava, ouvia as gargalhadas estridentes das turistas da quinta avenida ecoarem. Quando deu por si estava rodeada de pedestres, não sabia dizer quem era, de onde viera. Então os paramédicos do 911 chegaram, a examinaram e a encaminharam para a delegacia. Lá, pelo número do social security, conseguiram identificar a procedência dela. Como Beatriz estivesse sozinha em Harbor Beach, os policiais a acompanharam ao hotel, pegaram as coisas dela, fizeram o check out e a mandaram novamente para NYC.
Ao chegar à Big Apple, Bia reconheceu o Agente Hills: ele a esperava no aeroporto para conduzi-la para casa. Quando lá chegaram, a senhoria, aos prantos, a abraçou soluçando muito. O Agente Hills ajudou a dona da casa em que Bia alugava um quarto a fazer as malas dela e eles a levaram ao St. James Hospital. Desde a morte do noivo, no 11 de setembro, essa era sua nona internação psiquiátrica. Pensando em Jurgen estirado no chão, em frente o World Trade Center, na esquina da Liberty com a Church St. ela rememorava seu desespero. E, carregando as tulipas brancas bem junto ao corpo, ela repetia as últimas coisas que Jurgen, seu noivo, lhe dissera ao celular, pouco antes que os paramédicos o declarassem morto: “ eu estou bem querida. O susto foi grande, há muita agitação aqui e a poeira dificulta a respiração, mas tenho apenas ferimentos leves, só a dor de cabeça me incomoda. Serei encaminhado para o hospital e em uma semana estarei pronto para nos casarmos. Ache as mais bonitas tulipas brancas, como as que sempre lhe dou, e mantenha-as com você, onde elas estiverem eu estarei. I Love you, at last my Love has come along, my lonely days are over and life is like a song...

6 comentários:

  1. profe, venho lendo seus posts há algum tempo sem muita 'coragem' pra comentar, confesso. mas depois desse conto, eu simplesmente não posso deixar de dizer que adorei! não sei por que, mas me identifiquei de alguma forma... talvez pelo fato de que se passa em NYC, e aí já entra minha paixão mal resolvida por essa cidade, haha!
    de qualquer jeito, a história é incrível! parabéns e continue postando :)

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  2. Nossa! que ... que ... Magnifico!
    Seus conhecimentos são gigantescos, quanta riqueza de detalhes e quanta delicadeza.
    Ao final, senti o corpo estremecer.
    Um desfecho expressivo.
    O bom de não estar pessoalmente é exatamente isso: tenho o tempo suficiente para procurar outras palavras ao invés de "NOSSA" !

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  3. Esse conto realmente é maravilhosoooo! Me prendeu de tal forma que no início estava escutando o som dos carros e parecia estar vendo tudo que vc narrou, como se meus olhos fossem câmeras... ao final, estava arrepiada e confesso, me envolvi tanto com o conto que fiquei pensativa e emocionada... Mais uma vez, PARABÉNS minha querida!

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  4. Poxa! Gostaria de saber como você (ou a senhora?) consegue pôr tanta informação em uma história relativamente tão curta! Consegui indentificar, acho que, menos da metade das informações do texto huaehae. Toda a descrição dos lugares, escritores e seriados... detalhes muito inteligentes, bem utilizados. Gostaria de ter esse vasto conhecimento que a professora tem! Sem dizer, é claro, do enredo em si. Que, aliás, me lembrou muito o último filme do Scorsese, A Ilha do Medo. E se foi essa a fonte de inspiração, foi muito bem utilizada.

    Enfim. Já tem bastantes elogios acima e não tenho certeza se o elogio de um aluno conta muito, mas... parabéns! Gostei muito do texto, assim como de todos que aqui leio.

    Paro por aqui porque já escrevi demais. Daqui a pouco vou me achar "o" crítico literátio. haeuhea

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  5. Gui, interessante seu comentário. Não vi Ilha do Medo ainda, ma sagoar fiquei muito curiosa, vou assistir para compreender a relação que você fez. Obrigada. Ps: pode me cahamar de você rsss.

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  6. Adorei o texto! O mistério é mantido até o fim, e o que achei mais interessante foram as referências usadas ao longo da narração, principalmente quando falou da Etta James, que eu amo. Diga-se de passagem o álbum entitulado "At Last", o qual possui músicas magníficas.
    By the way, sou seu aluno no Alfa Avenida. Me chamo Rafael.

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