Pensar nem sempre é estar doente dos olhos

O maravilhoso heterônimo de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, diz em um dos poemas que amamos que " pensar é estar doente dos olhos", porque ele quer que seus leitores se ponham a sentir o mundo. Mas, como hoje poucas pessoas fazem qualquer uma das duas coisas ( pensar e sentir), permitimo-nos dizer que sentir é fundamental, mas pensar também. Exercite essas duas capacidades: leia mais, viaje mais, converse mais com gente interessante, gaste seu tempo discutindo ideias e não pessoas.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Vestígios do Nada- Giovana Fontes

O texto a seguir é, antes de mais nada, um exercício de escrita. Trata-se de um conto que eu creio que ainda esteja inacabado, mesmo assim resolvi dividi-lo com os nossos leitores ( nossa parece tão pedante isso ,né?), pelo menos com os 33 aqui cadastrados rssss, que têm coragem de palpitar sobre minhas loucuras. Leiam e comentem, se tiverem paciência.
Vestígios do nada
São definitivamente tortuosos os caminhos pelos quais a vida nos conduz. A pequena cidade de Sezelândia ainda não havia percebido algo de diferente naquela manhã. Mas eu, como sempre, esperava que uma coisa qualquer fantástica acontecesse e nos tirasse daquele marasmo em que vivíamos, eterno finados em dia de chuva!
Quando os moradores se reuniram diante da praça, espantados, falando muito, tergiversando sobre as possibilidades do ocorrido, ninguém de fato tinha idéia do que havia realmente se passado ali. Era treze de janeiro, um calor africano, sem vento, que desanimava até os refrigeradores de ar, havia se instaurado na cidade. Fato típico do período, porém dessa vez viera ainda mais intenso, como se uma caldeira imensa aquecesse o local sem que nada pudesse refrescá-lo.
Em meio à balburdia, seu Nicolino gritou que o neto dele havia desaparecido sem deixar rastros. Na mesma melodia monocórdica, em tom de ladainha, vieram os demais lamentos: D. Juvelina e D. Natalina também haviam perdido os netos; D. Suzana gritava pela filha; Até o bebê de 8 meses havia estranhamente desaparecido do ventre de Ernestina sem deixar rastros, como diabos isso era possível? Parto sem corte, sem dor, sem ser percebido pela mãe? Só podia mesmo ser coisa do demo, do tinhoso, do três dedos, dizia D. Juvelina se benzendo com galhos de arruda e guiné e fazendo o sinal da cruz.
Enquanto isso, Ernestina estava sentada na sarjeta, catatônica, repetindo sempre a mesma história: saíra de casa às 7 da noite com o marido para ir ao circo. A lona havia sido montada no dia anterior, aquela era a estréia, nenhuma alma da cidade havia faltado, estavam todos lá: inclusive os futuros desaparecidos. Quando ela e Geraldo voltaram para casa, por volta das 11 da noite tudo estava como de costume, mas eis que na manhã seguinte, ela, que dormira grávida, acordara como o ventre seco, como se o Augusto ( seu agora ex-futuro filho) nunca tivesse existido!
Num lampejo, Sezefredo – o Sherlock Holmes local,como era conhecido – teve a brilhante idéia: vamos refazer os passos de todos, nesse processo de reconstituição do acontecido não era possível que não encontrassem uma falha, um fato despercebido até então, um detalhe qualquer que os conduzisse a uma explicação!
O curioso era que nenhum dos envolvidos se via capaz de reproduzir seus próprios passos, parecia que houvera uma amnésia coletiva: lembravam-se de ter ido ao circo, porém esqueceram-se de todo o resto. Por mais que se esforçassem, nada vinha à memória, nem mesmo Sezefredo, cuja memória era de elefante, conseguia se recordar do que fizera. Salomão, o único que se mantinha calmo, pacientemente começou a proferir sua teoria, ouvida atentamente por todos, já que sua sapiência era notória. “Eu”, disse ele, “creio que estamos diante da mais pura manifestação sobrenatural. Muitos aqui devem se recordar do que aconteceu na cidade vizinha, Torvelinho, quando estranhos fenômenos levaram toda a cidade a mudar de atitude em relação à vida. Talvez seja isso que precisemos, quem sabe alguém não nos está dando uma oportunidade de repensarmos quem somos e como vivemos.”
As sábias palavras de Salomão ecoaram fundo nos moradores de Sezelândia, ninguém sabia o que dizer. Fazia sentido, mas por que eles? Era o que todos silenciosamente se perguntavam! Apenas Ernestina, ainda em transe, não ouvira nada do que foi dito. Ela só fazia repetir o nome de Augusto e depois fazia murmúrios incompreensíveis. Só muito mais tarde Salomão compreendeu que ela entoava versos de Castro Alves, que ele lhe ensinara, repetindo sempre a mesma triste parte: “todas têm os seus amores/eu não tenho mãe nem filhos/nem irmão, nem lar, nem flores”.
Por aquelas paragens era comum se ouvirem histórias de acontecidos misteriosos. Eu me lembro que quando era pequena minha avó costumava contar a história de Rosalva, uma menina que, de um dia para o outro, desapareceu sem deixar rastros. Ela me punha medo, dizia que moça direita não dava trela a qualquer rapaz, que aquela menina, a desaparecida, tinha sido levada pelo demo, porque ele ( o capeta) em noites de lua cheia aparecia todo vestido de branco, alinhado em seu terno, com um bonito chapéu, cortejando as moças namoradeiras. Depois, ele as tomava nos braços e saía rodopiando pela praça, valsando, gargalhando. Quando a moça estava completamente seduzida, ele retirava a alma dela e desaparecia com o corpo da pobre coitada, assim havia sido com Rosalva, repetia a vó. Mas depois que cresci, eu descobri que, na verdade, muitas dessas “sumidas”, inclusive a Rosalva, tinham era fugido com algum vendedor, acreditando que levariam uma vida melhor longe de Sezelândia, porém no fundo, na maioria das vezes, acabavam em algum prostíbulo de Belo Horizonte, abandonadas pelos “ noivos” que as deixavam lá com a promessa de vi-las buscar depois, o que jamais acontecia. No fundo, era esse o temor de minha avó. Só que comigo isso não se daria, estava para nascer o homem que me poria numa situação dessa, eu quero me casar sim, mas com alguém que me respeite. Vou sair desse fim de mundo, mas meu destino é o estudo. Quero ser normalista. Vou dedicar minha vida a desemburrecer as pessoas.
Bem enquanto eu me perdia nesses devaneios, a cidade se organizava para as buscas. Todos sabiam que o ocorrido de agora nada tinha a ver com essas memórias que eu evoquei e que muitos ali conheciam. O caso era completamente outro, até porque todos os desaparecidos eram crianças - e ainda tinha o Augusto...esse era o maior mistério, sumido do ventre da mãe...nem Salomão tinha resposta para isso, ainda!
De repente, em meio à multidão, ouviu-se Ernestina gritando: foi ele, eu sabia que aquele malabarista tinha algo de estranho, aqueles olhos fundos, as mãos alongadas demais, ele tocou minha barriga antes do espetáculo, disse que sempre sonhara em ser pai, mas que Deus não lhe dera essa graça. “Desgraçado”, bradava ela, “aquele maldito levou meu filho”. Porém, apesar de compadecidos com a dor de Ernestina, nenhum dos moradores dava crédito às palavras dela: como diabos o homem teria tirado Augusto de seu ventre sem deixar rastros...Muitos já começavam a pensar que a gravidez dela fosse falsa, psicológica, coisa de gente louca, porque bebê não some assim. Só que o Dr. Fausto, homem muito respeitado, afirmou que acompanhara a gravidez e que a criança estava sim no ventre dela, ele próprio ouvira o coração do bebê bater. A única sandice de tudo isso era Ernestina insistir em chamar a criança de Augusto, como se ela pudesse mesmo saber o sexo, coisa que era impossível naquele tempo, por aquelas bandas. Mas todos já estavam tão acostumados com isso que nem mesmo se davam conta dessa barbaridade.
Enquanto todos se desesperavam, afinal nada haviam lembrado, Salomão sugeriu uma nova tentativa: deveriam todos voltar ao circo naquela noite, iriam atentos não ao espetáculo, mas sim ao que acontecia na platéia durante a apresentação. Vieram os cães amestrados, o macaco com os palhaços e seu carro de bombeiro, o homem-cobra, os trapezistas... e nada, tudo parecia normal. Enfim, surgiu o malabarista: olhos fundos, pálpebras pintadas de negro e, em vez de trazer os tradicionais malabares, nesta noite ele trazia três ursos de pelúcia falantes. Todos ficaram espantados, jamais tinham visto coisa semelhante, apenas Sezefredo afirmou que vira numa fita de cinema algo parecido, segundo ele era coisa de americano, só podia ser. O malabarista então começou suas evoluções com os ursos, que gritavam e riam ( como se fossem animados) durante a apresentação. Ao final, ele passou os bichinhos de mão em mão e qual não foi o espanto quando as pessoas perceberam que eram bonecos comuns, como quaisquer outros, não possuiam orifícios muito menos algum equipamento que lhes possibilitasse falar. Assim absortos com os brinquedos nenhum dos moradores de Sezelândia percebeu que o tempo passara e que a noite se tornara dia. Quando saíram daquela espécie de transe, nada podiam dizer sobre o ocorrido. Quanto ao circo, desaparecera como que por encanto e nunca mais se soube se ele realmente estivera ali naquelas paragens ou não: a mente de todos estava esvaziada dos acontecimentos referentes àquele período, apenas uma estranha melodia ecoava na cabeça dos moradores quando os esforços se voltavam para as lembranças.

4 comentários:

  1. Olá!
    Achei o conto muito interessante, principalmente a ambientacao. De cara me lembrou as cidadezinhas de García Márquez, inclusive o ar de mistério num universo cujas leis naturais sao alteradas em nome de uma realidade fantástica e extraordinária. Nao guarde mais contos na gaveta, publique-os, aqui mesmo. Acabados ou nao, sao excelentes. Sou suspeita, claro, por ter identificado o tom do Gabo e por te-lo como integrante da minha santissima trindade literaria. Mas tambem gostei do seu tom, e espero que esse nao seja o ultimo conto seu que li.

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  2. Muito bom profª, começando pelo título. A cidade interiorana, circo, brinquedos. Sempre com margem aos mistérios. Quem sou eu pra falar, mas como leitor gostei muito e espero que compartilhe mais contos aqui!

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  3. Giovana como sempre me surpreendendo! A leitura é gostosa e nos prende. Faço minhas as palavras dos outros leitores “Não guarde mais os seus contos na gaveta, publique-os!“

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  4. Olá Giovana,
    Adoreeeii o contooo..
    a trama é muito interessante, me prendeu a leitura até o fim.
    Queria saber o q aconteceeeeuu..hehe...
    e achei mto legal a parte do "ex-futuro-filho", me lembrei do meu irmao, que vivia me dizendo isso do meu ex namorado! hehe.. (bizarro)
    Parabéns, e continue a blogar mais das suas histórias! Beijos

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