Pensar nem sempre é estar doente dos olhos

O maravilhoso heterônimo de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, diz em um dos poemas que amamos que " pensar é estar doente dos olhos", porque ele quer que seus leitores se ponham a sentir o mundo. Mas, como hoje poucas pessoas fazem qualquer uma das duas coisas ( pensar e sentir), permitimo-nos dizer que sentir é fundamental, mas pensar também. Exercite essas duas capacidades: leia mais, viaje mais, converse mais com gente interessante, gaste seu tempo discutindo ideias e não pessoas.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Revolução desarmada por Giovana Marques Fontes

Quando estava na Faculdade, certo dia, tive uma discussão fervorosa com uma colega de sala. Analisávamos, para a aula de Literatura Universal, o romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Eu defendia a tese de que a referida obra, muito mais do que retratar a traição de Emma ao marido Charles, era um retrato da estupidez humana, pois quase todas as personagens (farmacêutico, dona da pensão, a própria Emma) são interiorianos fofoqueiros, mesquinhos, fúteis e que, na maioria do tempo, ocupam-se de falar da vida alheia. Disse também que Emma não traíra Charles por ser leviana, mas porque, como as mocinhas dos romances românticos, acreditava em príncipe encantado: ou seja, traiu por ser bobinha e crer que alguém possa ser realmente perfeito. Minha colega protestou veementemente: “Todas nós somos um pouco Emma Bovary, não acho que ela seja estúpida!”, ao que eu prontamente retruquei: “ Se você quer se assumir idiota, faça-o sozinha!”. Hoje vejo que, em partes, a moça tinha razão.

Mas o que permitia a duas pessoas lerem a mesma obra, interpretá-la de maneiras opostas e, ao mesmo tempo, corretas? O fato de que a leitura nos propiciou, como aliás é sua função, momentos de fantasia, embevecimento e também capacidade de reflexão sobre o universo em que vivemos. Afinal, ler é a nossa maior arma, pois o conhecimento foi e sempre será o único e genuíno instrumento de poder, daí porque em tempos de guerra e de regimes ditatoriais os intelectuais são sempre os primeiros a serem silenciados.

Na realidade, quando entramos em contato com uma obra literária, revisitamos mundos, culturas, costumes e, sobretudo, enxergamos a alma alheia; e não só a do escritor que nos oferece de maneira tão pródiga suas impressões, mas também a nossa própria, pois reconhecemo-nos nas páginas, a nós e àqueles que nos cercam, fazendo com que repensemos nossa forma de agir e reagir sobre as coisas do mundo. Marcel Proust dizia que “ Na verdade, todo leitor é, quando está lendo, um leitor de si mesmo. O trabalho do escritor é meramente uma espécie de instrumento ótico, que ele oferece ao leitor para capacitá-lo a discernir aquilo que, sem o seu livro, ele talvez jamais experimentaria sozinho”.

Isso nos leva a perceber que quem não lê (sob a alegação de ser chato, ou pior, de que já passou boa parte da vida sem os livros e eles não fizeram falta) abdica da capacidade melhor dos seres humanos: pensar. Quando vemos em Clarice Lispector retratos de mulheres conformadas, como Laura, do conto A imitação da rosa, acabamos por refletir sobre que posição ocupamos. Estaríamos nós também sendo Lauras, nos resignando com a vida de mesmice que levamos? ( ou seríamos Emma Bovary, como queria minha colega?) Se analisamos com cuidado os casamentos frustrados de Lygia Fagundes Telles em Antes do Baile Verde, infelizmente, reconhecemos agir muitas vezes como as personagens ali descritas. Porém, se por um lado isto é trágico, pois pode nos prenunciar o mesmo destino, por outro nos permite rever nossas posições, alterar nossa “rota suicida”.

É interessante notar, contudo, que nossos jovens têm lido cada vez menos e se acham, por isso, altamente transgressores. Creem firmemente que ao negarem a fantasia e o conhecimento trazidos pela literatura estejam afrontando seus pais e professores, reafirmando a sua condição (felizmente passageira) de adolescentes, no sentido mais estrito do termo. Quanta inocência! Não percebem que os únicos prejudicados são eles mesmos, posto que quanto menor sua capacidade de pensar, criar e criticar o mundo em que vivem, mais eles são manipuláveis, tornando-se os alfinetes do Apólogo de Machado de Assis: onde os põem , ficam; pois no mais das vezes nem se dão conta de que estão sendo dirigidos.

Portanto, se queremos realmente transgredir e mudar algo ( como atestam os adolescentes) façamos a revolução desarmada: leiamos, que o melhor remédio para as dores da alma e do consciente é dar a eles a fantasia e a capacidade de reflexão que só a leitura, em sentido amplo, pode nos propiciar.

2 comentários:

  1. Que bom que tomou a iniciativa de criar esse blog. Sou apaixonado pelas suas aulas e as do Fabiano, pois além de conteúdo elas tem ironia e bom gosto. Enfim, sempre achei você uma professora fantástica!
    Agora, com seu blog, será mais fácil buscar inspiração quando dela necessitar. Muito bom, parabéns!

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  2. Esses dois são incríveis! Me ajudaram e muito no período de transição até chegar na faculdade. Por isso e tantas outras coisas eu sempre serei muito grata! Em relação a este artigo, vc descreveu muito bem o que sempre pensei quando lia Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles e tantos outros. A cada leitura uma releitura do meu cotidiano formando uma opinião mais crítica e até mesmo entendendo melhor tudo que acontecia. Meu tempo se restringiu agora e minhas leituras mudaram, porém é bom relembrar desses tempos através de leituras de artigos como esses.

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